mai
12
2020
Retirar-se para dentro de si e o demônio da Acídia (tédio).
Marcus Reis Pinheiro – Filosofia UFF
Abril de 2020
“As pessoas buscam para si mesmas retiros nos campos, à beira mar ou nas montanhas. Tu também, frequentemente, tens tais desejos. Mas isso é de grande ingenuidade, pois na hora em que quiseres, podes se retirar para dentro de ti mesmo. Não há lugar mais tranquilo nem prazeroso para o ser humano se retirar do que para dentro de sua própria alma.”
Marco Aurelio, Meditações IV, 3
Estamos envoltos no tema do isolamento social, no tema do recolhimento em nossos próprios lares. As reflexões dos filósofos e das religiões da antiguidade estão repletas de desenvolvimentos sobre este tema. O tema do recolhimento está intimamente vinculado ao tema do “parar”, do deixar de fazer o que normalmente se fazia, do interromper um fluxo que se supunha natural e inevitável.
Sócrates, o ícone maior dessas filosofias helenistas, já dava as suas paradas. Ele aparece ficando imóvel e voltando o espirito sobre si mesmo no Banquete de Platão tanto no seu início dramático, ao estar prestes a entrar na casa do seu anfitrião, Agatão, quanto no fim, no discurso de Alcebíades, em que este narra o evento de Sócrates ter ficado imóvel por 24 horas, encasquetado com algum pensamento. O termo ali usado é o mesmo que foi fundamental para o movimento monástico dos séculos IV d.c. e V d.c., anachóresis, que quer dizer exatamente retirar-se, ausentar-se, voltar-se. Tendo Sócrates como modelo, diversas escolas filosóficas defendiam o valor da anacorese, deste retirar-se para dentro de si, como em um autoexame. A partir destas filosofias, paralelos podem ser feitos com o movimento monástico, em que há o imperativo de ausentar-se da vida das cidades e rumar para o deserto, onde se encontram seus piores demônios.
Os estoicos também recomendavam um momento de repouso antes de reagir instintivamente frente a uma excitação vinda do exterior: precisamos primeiro saber exatamente o que supostamente nos ameaça para saber se nossa reação de nos proteger ou não é realmente necessária ou apenas fruto de um “fantasma” que nossa “fantasia” (phantasia) produziu. Na verdade, os estoicos compreendem esse “deter-se para realizar uma análise” como uma das maiores liberdades humanas, isto é, permitir-se tempo para deliberar sobre o que nos acontece e sobre como reagir frente a isso.
Temos que entender o seguinte: poder parar é da ordem da liberdade e do exercício do que há de mais humano no humano. Para os estoicos, interromper uma reação imediata frente ao que nos acontece, isto é, permitir-se estancar uma ação impensada é da ordem do domínio sobre si mesmo, daquilo que é autêntico e autônomo. Novamente, Sócrates está sendo lembrado quando diz “só sei que nada sei”. Como exemplum, nos lembra que provavelmente também nós não sabemos ao certo porque, para que, nem como levamos a vida que levamos. Deixar-se parar e ensaiar novos caminhos é da ordem da coragem de olhar para si mesmo.
Não estou dizendo que devemos imitar os estoicos, o homem está jogado no mundo e precisa encontrar por si próprio seus meios de viver e morrer nele. No entanto, é rico podermos pensar sobre uma defesa vigorosa do imobilizar-se, tão contrária aos nossos dias. Acredito que esse “se permitir parar” é importantíssimo para os dias atuais em que mais do que nunca parar, isolar-se, silenciar-se está tão conectado com a falta de visibilidade de si mesmo. Em verdade, este “si mesmo” é sempre pensado como um produto a ser vendido no mercado do espetáculo midiático.
No entanto, além do imperativo contemporâneo à hiperatividade e à hipervisibilidade, agora, mais ainda, se nos impôs um retirar-se. Certas pessoas são acostumadas à força vital deste estancar o frenesi do dia a dia e acabam por encontrar um repouso e um acolhimento inesperado vindo de todo o mundo: o recolhimento agora é imperioso por motivos sanitários. Finalmente, os que amam aquietar-se podemos abrir mão deste correr sem saber para que nem para onde, dessa pressa eterna, desse estar ontologicamente atrasado. Parar para pensar, eis o imperativo da vida retirada, da vida contemplativa. Vale lembrar, que não há nada de anti-político neste retirar-se, pelo contrario, se trata, especialmente em nossos dias, de atitude de resistência frente aos imperativos do “promova-se”, do “seja o empreendedor de si mesmo”, do “corra atrás do que lhe falta”, imperativos que nos subjugam ao progresso indefinido e irrespirável que nos impõem os padrões contemporâneos.
Algumas centenas de anos depois dos estóicos, o movimento monástico, especialmente no século IV d.c., contou com milhares de homens e mulheres que se retiravam para o deserto a fim de lutar contra os piores demônios. Este é obviamente outro elemento fundamental na vida recolhida: ter que lidar consigo mesmo e com as forças que surgem em si mesmo. Claro que nunca fugimos de nós mesmos, mas as distrações do dia a dia conseguem, por algum tempo, nos manter alheios a forças em nós que não queremos nem admitir nem encarar de frente. Evágrio Pôntico, autor da virada do século IV para o V d.c., apresenta uma importante lista com oito demônios (ou grupo de demônios) a serem enfrentados, os quais, mais tarde, seriam transformados nos sete pecados capitais. Tais demônios ou pensamentos (logismoi) estavam vinculados às três partes da alma platônica: na parte apetitiva, a gula e a luxúria; na parte irascível, a avareza, a raiva, a tristeza e a acídia; e por fim, na parte racional, a vaidade e a prepotência. Evágrio, especialmente em seus textos para os iniciantes na vida monacal, nos apresenta diversos meios para se enfrentar esses demônios.
Talvez um dos mais estudados e interessantes seja o demônio do meio dia, o demônio da acídia, que pode ser pensado como uma forma de tédio. Percebe-se o refinamento das análises dos monges do deserto, exímios conhecedores dos corações dos homens, em que construíam sua demonologia calcada em uma cronologia, isto é, em um tempo específico para cada demônio. O demônio do meio dia é assim chamado, pois tem o hábito de aparecer logo após o almoço, quando sentimos um torpor, uma preguiça, uma desesperança e uma vontade de abandonar a luta diária. A tática principal dos demônios é fazerem se passar por divinos, anjos, enviando-nos imagens e pensamentos que aparentemente vão ao encontro da vontade divina, mas em realidade vão de encontro a ela. Os demônios têm livre acesso às memorias do monge, mas não sobre a livre decisão de cada um. Assim, a tentação é inevitável, mas não a escolha de lutar contra ela e de superá-la.
Em um dos textos principais (Praktikós 12) sobre a acídia, Evágrio assim nos fala deste demônio:
“O demônio da acídia, também chamado de demônio do meio dia, é o mais pesado de todos os demônios. Ele ataca o monge perto da quarta hora e circunda sua alma até a oitava. Primeiro, ele faz com que o sol pareça se mexer lentamente ou ter parado completamente e que o dia tenha cinquenta horas. Então, ele força os olhos a se afastarem continuamente para as janelas, e a impulsionar-se para fora da cela, a observar fixamente o sol, se ele já alcançou a nona hora, e a conferir aqui e ali se não chega algum irmão. Então, ele inspira o ódio ao seu lugar e à sua própria vida, especialmente ao trabalho das próprias mãos. Também lhe vai fazer pensar que o amor abandonou os irmãos e que não há ninguém que venha lhe consolar. E se alguém, durante esses dias, entristeceu o monge, o demônio se serve disto para aumentar a aversão. Então, ele o conduz para desejar outros lugares nos quais mais facilmente conseguiria o que lhe é preciso e uma atividade mais prazerosa e de maior sucesso. Ele ainda acrescenta que agradar ao Senhor não é uma questão de lugar, pois, ele diz, o divino pode ser adorado em toda parte. Ele ainda acrescenta a isso a memória dos familiares e do tipo de vida anterior. Põe à frente dos olhos as dores da ascese lhe descrevendo o tempo longo da vida. E, como se diz, ele movimenta sua artimanha para que o monge abandone o “ringue” de sua cela. Nenhum outro demônio segue imediatamente a este. Porém, depois da luta, um estado de paz e uma graça indizível alcança a alma.”
Temos algumas características que descrevem o estado psíquico dominado pela acídia. Ele torna a vida pesada, dura de carregar, tem-se grande dificuldade em se concentrar, sendo a alma levada ou para o passado ou para o futuro, um desejo de distração, e um impulso pela procrastinação irresistível. Talvez o que reúna todas suas características seja um enfado, um enjoo com o momento presente, presente este visto especialmente como algo trabalhoso de que se procura escapar.
Há uma distorção temporal fundamental, pois o sol parece andar mais lento ou ter de todo parado. O tempo passa mais devagar por causa do desejo de que passe mais rápido. A sensação temporal vai contra o desejo de não viver o tempo presente e, por isso, o tempo se estende: ao prestarmos muita atenção na passagem do tempo, ele parece se demorar mais e, assim, minutos parecem demorar horas.
O desafio está em amar o tempo presente no que há de trabalhoso nele, fazer deste trabalho seu irmão e companheiro, não querer abrir mão de ter que se esforçar, não procurar por atalhos ou quebra galhos nem passatempos que efetivem o desejo de procrastinação. Por outro lado, não se trata também de encarar o trabalho presente como um castigo, uma condenação inevitável. Não se deve aceitar o presente como um remédio amargo, pois ainda não se o aceita completamente, já que o seu valor continua negativo. A torção necessária para abordar o tempo presente de modo saldável está em, de alguma forma, descobrir-se enamorado por ele. Quem não amar o pouco que lhe cabe, não consegue amar nada, vive na distopia de amar o passado e projetar a felicidade no futuro. O que faz o demônio do meio dia ser tão pesado é não querermos estar no aqui e agora, produz um eterno presente que nunca se escoa, um tempo que pesa porque não passa.
O antídoto para tal demônio é ordenar-se a enfrenta-lo. Há a possibilidade de a alma impor-se o enfretamento. Precisamos apostar e vir a conhecer este apaixonar-se pelo pouco presente. Ao enfrenta a acídia, Evágrio nos sugere conjugar de modo inusitado paciência e coragem. Muitas vezes, paciência é visto como forma de submissão e a coragem como feito de arrebatamentos apressados, mas Evágrio os conjuga de modo refinado e muito interessante. Antes de começar, é necessário aceitar o combate contra este demônio, que também é um demônio do desânimo, utilizando a conjugação de uma coragem esperançosa e uma persistência paciente.
Há assim, uma metodologia para o enfrentamento do demônio. Deve-se, primeiro, aceitar o dom das lágrimas, pois é o choro um dos elementos mais importantes na luta contra diversos demônios. Chorar amolece o coração entediado pela dureza de não ver nada de agradável no presente e abre a possibilidade de um combate delicado e firme. A proposta, então, junto às lágrimas, é dividir o eu em dois, sendo que um consola e encoraja e outro é acolhido e obediente. Acolhendo a dor e permitindo o choro, o monge diz não para o que o leva a se distrair e busca realizar com atenção o que se lhe oferece, o que lhe cabe. O monge então, conversa consigo mesmo e se impõe uma tarefa: conviver com o que se é e que se tem para talvez descobrir um amor pelo seu pouco, uma suavidade e doçura de ser dono do seu tempo para realizar o que é preciso. Assumir as tarefas de modo calmo, pouco a cada vez, prestando atenção a cada gesto. Com este vagar, perde-se de vista o objetivo final e realiza-se o que aqui e agora se lhe impõe. A luta contra a acídia é um treinamento de ordenar a si mesmo a enfrenta-la, com o objetivo de assumir o seu tempo presente com a audácia da paciência.
O termo principal que nos propõe Evágrio é hypomoné, que conjuga tanto a força da persistência quanto a abnegação da paciência. Este termo é formado por um prefixo hypo, sobre, e o substantivo móne que vem do verbo meno permanecer, ficar – se nos permitirem uma tradução “etimológica, um sobreficar, superficar. Trata-se de uma audácia da paciência que tem a coragem de abrir mão do muito que não se possui (sempre no futuro ou no passado), mas que aceita o pouco do agora que é próprio, sua propriedade..
Coragem de não querer mais do que se tem, coragem em desafiar o imperativo desmedido de sempre crescer mais, de sempre progredir, de sempre querer mais, com a paciência de ficar no aqui e agora e usufruir da calma de ter para si o seu tempo. Não há outra alternativa a não ser aceitar o combate, o combate que se utiliza da calma de ser quem se é, de abrir mão da onipotência em transformar o ontem e o amanha e viver o aqui e agora, mesmo sendo ele pouco, mesmo sendo enclausurado.
Marcus Reis Pinheiro – Filosofia UFF
Abril de 2020
“As pessoas buscam para si mesmas retiros nos campos, à beira mar ou nas montanhas. Tu também, frequentemente, tens tais desejos. Mas isso é de grande ingenuidade, pois na hora em que quiseres, podes se retirar para dentro de ti mesmo. Não há lugar mais tranquilo nem prazeroso para o ser humano se retirar do que para dentro de sua própria alma.”
Marco Aurelio, Meditações IV, 3
Estamos envoltos no tema do isolamento social, no tema do recolhimento em nossos próprios lares. As reflexões dos filósofos e das religiões da antiguidade estão repletas de desenvolvimentos sobre este tema. O tema do recolhimento está intimamente vinculado ao tema do “parar”, do deixar de fazer o que normalmente se fazia, do interromper um fluxo que se supunha natural e inevitável.
Sócrates, o ícone maior dessas filosofias helenistas, já dava as suas paradas. Ele aparece ficando imóvel e voltando o espirito sobre si mesmo no Banquete de Platão tanto no seu início dramático, ao estar prestes a entrar na casa do seu anfitrião, Agatão, quanto no fim, no discurso de Alcebíades, em que este narra o evento de Sócrates ter ficado imóvel por 24 horas, encasquetado com algum pensamento. O termo ali usado é o mesmo que foi fundamental para o movimento monástico dos séculos IV d.c. e V d.c., anachóresis, que quer dizer exatamente retirar-se, ausentar-se, voltar-se. Tendo Sócrates como modelo, diversas escolas filosóficas defendiam o valor da anacorese, deste retirar-se para dentro de si, como em um autoexame. A partir destas filosofias, paralelos podem ser feitos com o movimento monástico, em que há o imperativo de ausentar-se da vida das cidades e rumar para o deserto, onde se encontram seus piores demônios.
Os estoicos também recomendavam um momento de repouso antes de reagir instintivamente frente a uma excitação vinda do exterior: precisamos primeiro saber exatamente o que supostamente nos ameaça para saber se nossa reação de nos proteger ou não é realmente necessária ou apenas fruto de um “fantasma” que nossa “fantasia” (phantasia) produziu. Na verdade, os estoicos compreendem esse “deter-se para realizar uma análise” como uma das maiores liberdades humanas, isto é, permitir-se tempo para deliberar sobre o que nos acontece e sobre como reagir frente a isso.
Temos que entender o seguinte: poder parar é da ordem da liberdade e do exercício do que há de mais humano no humano. Para os estoicos, interromper uma reação imediata frente ao que nos acontece, isto é, permitir-se estancar uma ação impensada é da ordem do domínio sobre si mesmo, daquilo que é autêntico e autônomo. Novamente, Sócrates está sendo lembrado quando diz “só sei que nada sei”. Como exemplum, nos lembra que provavelmente também nós não sabemos ao certo porque, para que, nem como levamos a vida que levamos. Deixar-se parar e ensaiar novos caminhos é da ordem da coragem de olhar para si mesmo.
Não estou dizendo que devemos imitar os estoicos, o homem está jogado no mundo e precisa encontrar por si próprio seus meios de viver e morrer nele. No entanto, é rico podermos pensar sobre uma defesa vigorosa do imobilizar-se, tão contrária aos nossos dias. Acredito que esse “se permitir parar” é importantíssimo para os dias atuais em que mais do que nunca parar, isolar-se, silenciar-se está tão conectado com a falta de visibilidade de si mesmo. Em verdade, este “si mesmo” é sempre pensado como um produto a ser vendido no mercado do espetáculo midiático.
No entanto, além do imperativo contemporâneo à hiperatividade e à hipervisibilidade, agora, mais ainda, se nos impôs um retirar-se. Certas pessoas são acostumadas à força vital deste estancar o frenesi do dia a dia e acabam por encontrar um repouso e um acolhimento inesperado vindo de todo o mundo: o recolhimento agora é imperioso por motivos sanitários. Finalmente, os que amam aquietar-se podemos abrir mão deste correr sem saber para que nem para onde, dessa pressa eterna, desse estar ontologicamente atrasado. Parar para pensar, eis o imperativo da vida retirada, da vida contemplativa. Vale lembrar, que não há nada de anti-político neste retirar-se, pelo contrario, se trata, especialmente em nossos dias, de atitude de resistência frente aos imperativos do “promova-se”, do “seja o empreendedor de si mesmo”, do “corra atrás do que lhe falta”, imperativos que nos subjugam ao progresso indefinido e irrespirável que nos impõem os padrões contemporâneos.
Algumas centenas de anos depois dos estóicos, o movimento monástico, especialmente no século IV d.c., contou com milhares de homens e mulheres que se retiravam para o deserto a fim de lutar contra os piores demônios. Este é obviamente outro elemento fundamental na vida recolhida: ter que lidar consigo mesmo e com as forças que surgem em si mesmo. Claro que nunca fugimos de nós mesmos, mas as distrações do dia a dia conseguem, por algum tempo, nos manter alheios a forças em nós que não queremos nem admitir nem encarar de frente. Evágrio Pôntico, autor da virada do século IV para o V d.c., apresenta uma importante lista com oito demônios (ou grupo de demônios) a serem enfrentados, os quais, mais tarde, seriam transformados nos sete pecados capitais. Tais demônios ou pensamentos (logismoi) estavam vinculados às três partes da alma platônica: na parte apetitiva, a gula e a luxúria; na parte irascível, a avareza, a raiva, a tristeza e a acídia; e por fim, na parte racional, a vaidade e a prepotência. Evágrio, especialmente em seus textos para os iniciantes na vida monacal, nos apresenta diversos meios para se enfrentar esses demônios.
Talvez um dos mais estudados e interessantes seja o demônio do meio dia, o demônio da acídia, que pode ser pensado como uma forma de tédio. Percebe-se o refinamento das análises dos monges do deserto, exímios conhecedores dos corações dos homens, em que construíam sua demonologia calcada em uma cronologia, isto é, em um tempo específico para cada demônio. O demônio do meio dia é assim chamado, pois tem o hábito de aparecer logo após o almoço, quando sentimos um torpor, uma preguiça, uma desesperança e uma vontade de abandonar a luta diária. A tática principal dos demônios é fazerem se passar por divinos, anjos, enviando-nos imagens e pensamentos que aparentemente vão ao encontro da vontade divina, mas em realidade vão de encontro a ela. Os demônios têm livre acesso às memorias do monge, mas não sobre a livre decisão de cada um. Assim, a tentação é inevitável, mas não a escolha de lutar contra ela e de superá-la.
Em um dos textos principais (Praktikós 12) sobre a acídia, Evágrio assim nos fala deste demônio:
“O demônio da acídia, também chamado de demônio do meio dia, é o mais pesado de todos os demônios. Ele ataca o monge perto da quarta hora e circunda sua alma até a oitava. Primeiro, ele faz com que o sol pareça se mexer lentamente ou ter parado completamente e que o dia tenha cinquenta horas. Então, ele força os olhos a se afastarem continuamente para as janelas, e a impulsionar-se para fora da cela, a observar fixamente o sol, se ele já alcançou a nona hora, e a conferir aqui e ali se não chega algum irmão. Então, ele inspira o ódio ao seu lugar e à sua própria vida, especialmente ao trabalho das próprias mãos. Também lhe vai fazer pensar que o amor abandonou os irmãos e que não há ninguém que venha lhe consolar. E se alguém, durante esses dias, entristeceu o monge, o demônio se serve disto para aumentar a aversão. Então, ele o conduz para desejar outros lugares nos quais mais facilmente conseguiria o que lhe é preciso e uma atividade mais prazerosa e de maior sucesso. Ele ainda acrescenta que agradar ao Senhor não é uma questão de lugar, pois, ele diz, o divino pode ser adorado em toda parte. Ele ainda acrescenta a isso a memória dos familiares e do tipo de vida anterior. Põe à frente dos olhos as dores da ascese lhe descrevendo o tempo longo da vida. E, como se diz, ele movimenta sua artimanha para que o monge abandone o “ringue” de sua cela. Nenhum outro demônio segue imediatamente a este. Porém, depois da luta, um estado de paz e uma graça indizível alcança a alma.”
Temos algumas características que descrevem o estado psíquico dominado pela acídia. Ele torna a vida pesada, dura de carregar, tem-se grande dificuldade em se concentrar, sendo a alma levada ou para o passado ou para o futuro, um desejo de distração, e um impulso pela procrastinação irresistível. Talvez o que reúna todas suas características seja um enfado, um enjoo com o momento presente, presente este visto especialmente como algo trabalhoso de que se procura escapar.
Há uma distorção temporal fundamental, pois o sol parece andar mais lento ou ter de todo parado. O tempo passa mais devagar por causa do desejo de que passe mais rápido. A sensação temporal vai contra o desejo de não viver o tempo presente e, por isso, o tempo se estende: ao prestarmos muita atenção na passagem do tempo, ele parece se demorar mais e, assim, minutos parecem demorar horas.
O desafio está em amar o tempo presente no que há de trabalhoso nele, fazer deste trabalho seu irmão e companheiro, não querer abrir mão de ter que se esforçar, não procurar por atalhos ou quebra galhos nem passatempos que efetivem o desejo de procrastinação. Por outro lado, não se trata também de encarar o trabalho presente como um castigo, uma condenação inevitável. Não se deve aceitar o presente como um remédio amargo, pois ainda não se o aceita completamente, já que o seu valor continua negativo. A torção necessária para abordar o tempo presente de modo saldável está em, de alguma forma, descobrir-se enamorado por ele. Quem não amar o pouco que lhe cabe, não consegue amar nada, vive na distopia de amar o passado e projetar a felicidade no futuro. O que faz o demônio do meio dia ser tão pesado é não querermos estar no aqui e agora, produz um eterno presente que nunca se escoa, um tempo que pesa porque não passa.
O antídoto para tal demônio é ordenar-se a enfrenta-lo. Há a possibilidade de a alma impor-se o enfretamento. Precisamos apostar e vir a conhecer este apaixonar-se pelo pouco presente. Ao enfrenta a acídia, Evágrio nos sugere conjugar de modo inusitado paciência e coragem. Muitas vezes, paciência é visto como forma de submissão e a coragem como feito de arrebatamentos apressados, mas Evágrio os conjuga de modo refinado e muito interessante. Antes de começar, é necessário aceitar o combate contra este demônio, que também é um demônio do desânimo, utilizando a conjugação de uma coragem esperançosa e uma persistência paciente.
Há assim, uma metodologia para o enfrentamento do demônio. Deve-se, primeiro, aceitar o dom das lágrimas, pois é o choro um dos elementos mais importantes na luta contra diversos demônios. Chorar amolece o coração entediado pela dureza de não ver nada de agradável no presente e abre a possibilidade de um combate delicado e firme. A proposta, então, junto às lágrimas, é dividir o eu em dois, sendo que um consola e encoraja e outro é acolhido e obediente. Acolhendo a dor e permitindo o choro, o monge diz não para o que o leva a se distrair e busca realizar com atenção o que se lhe oferece, o que lhe cabe. O monge então, conversa consigo mesmo e se impõe uma tarefa: conviver com o que se é e que se tem para talvez descobrir um amor pelo seu pouco, uma suavidade e doçura de ser dono do seu tempo para realizar o que é preciso. Assumir as tarefas de modo calmo, pouco a cada vez, prestando atenção a cada gesto. Com este vagar, perde-se de vista o objetivo final e realiza-se o que aqui e agora se lhe impõe. A luta contra a acídia é um treinamento de ordenar a si mesmo a enfrenta-la, com o objetivo de assumir o seu tempo presente com a audácia da paciência.
O termo principal que nos propõe Evágrio é hypomoné, que conjuga tanto a força da persistência quanto a abnegação da paciência. Este termo é formado por um prefixo hypo, sobre, e o substantivo móne que vem do verbo meno permanecer, ficar – se nos permitirem uma tradução “etimológica, um sobreficar, superficar. Trata-se de uma audácia da paciência que tem a coragem de abrir mão do muito que não se possui (sempre no futuro ou no passado), mas que aceita o pouco do agora que é próprio, sua propriedade..
Coragem de não querer mais do que se tem, coragem em desafiar o imperativo desmedido de sempre crescer mais, de sempre progredir, de sempre querer mais, com a paciência de ficar no aqui e agora e usufruir da calma de ter para si o seu tempo. Não há outra alternativa a não ser aceitar o combate, o combate que se utiliza da calma de ser quem se é, de abrir mão da onipotência em transformar o ontem e o amanha e viver o aqui e agora, mesmo sendo ele pouco, mesmo sendo enclausurado.
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